Por que empreender nas favelas é, antes de tudo, um ato de resistência

É preciso reinventar o negócio todo dia, sem garantias, sem capital de giro, sem tempo para errar

*Por Paulo Magalhães e Rafael Ponzi

Durante décadas, o Brasil tem investido em políticas sociais com diferentes roupagens — de programas de transferência de renda a incentivos fiscais e financiamentos diversos. No entanto, a exclusão social segue firme, sólida como um muro de concreto armado. E por que não conseguimos escalar esse muro? Talvez porque seguimos insistindo em políticas que tratam os sintomas, mas não alcançam as raízes do problema.

É nesse contexto que proponho uma inflexão no olhar: é preciso pensar o crédito como ferramenta de emancipação, e não apenas como recurso financeiro. Mas esse crédito precisa vir acompanhado de assistência técnica, de formação continuada, de presença no território. Crédito sem suporte é, muitas vezes, armadilha. Crédito com acompanhamento é possibilidade real de mudança.

Quem já pisou em uma favela com o mínimo de escuta atenta sabe: empreender nesses territórios é, antes de tudo, um ato de resistência. É trabalhar enfrentando milícias, atravessando ruas dominadas por grupos armados, lidando com entregas negadas por medo ou por preconceito. É reinventar o negócio todos os dias sem garantias, sem capital de giro, sem tempo para errar.

Mesmo assim, essas pessoas persistem. E é exatamente aí que mora o nosso erro histórico: olhamos para esses empreendedores como exceção, quando, na verdade, são a regra de um país que vive à margem da formalidade. São eles que estão nos dizendo, com a prática, o que funciona. Basta ouvir.

A experiência do Banco Acredita é um exemplo poderoso. Começamos com uma aposta baseada na confiança — crédito concedido por meio da rede de lideranças comunitárias — e fomos aprendendo com o caminho. Descobrimos que o crédito, para fazer sentido, precisa vir com escuta, com orientação, com alguém que caminhe junto. É mais que dinheiro. É presença.

Isso, sim, é inovação social. Não aquela inovação fria, de startups desconectadas da realidade, mas a que nasce da convivência com os territórios, da escuta verdadeira, da capacidade de adaptar modelos a contextos diversos. Uma padaria na Maré não pode ser financiada como uma franquia em Ipanema. Uma empreendedora de bronzeamento natural na favela tem desafios e potências diferentes de uma empresa de cosméticos no centro. E ainda assim, ambas merecem crédito — e confiança.

Criticamos, sim, os modelos tradicionais que insistem em oferecer soluções padronizadas para realidades tão distintas. Crítico o uso limitado do FGTS, que não contempla o trabalhador informal, o mesmo que carrega esse país nas costas. Crítico o medo que muitos ainda têm de investir onde o Estado há muito se ausentou. Mas celebro, com ainda mais força, os exemplos de sucesso que já estão entre nós.

A lógica precisa mudar: não é a favela que precisa se adaptar ao sistema, é o sistema que precisa ser reconstruído com base nas vivências das favelas. É por isso que acredito no potencial de um Instituto nascido a partir do Banco Acredita: um laboratório vivo de soluções pensadas com quem vive os problemas, e não de cima para baixo.

Talvez a saída não esteja nos grandes planos que ocupam manchetes, mas nas pequenas ações que constroem autonomia real. Como eu sempre digo: enfrentar a desigualdade é estar presente. É errar junto, ajustar, testar de novo. E, principalmente, confiar. Porque quem está na ponta já faz muito com quase nada. Imagine o que fariam com um pouco de apoio — e muita escuta.

*Paulo Magalhães é Sociólogo e antropólogo do Instituto Acredita e Rafael Ponzi é Diretor do Instituto e do Banco Acredita

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