Nos últimos 40 anos, a Amazônia e o Cerrado sofreram queimadas em 86% de suas áreas. Os dados mais recentes, de 2024, apontam para uma escalada alarmante: a Amazônia registrou 15 milhões de hectares queimados, um aumento de 85% em relação a 2023. Enquanto no Cerrado as queimadas atingiram 10,5 milhões de hectares, 75% a mais do que no ano anterior. Os números não são apenas estatísticas ambientais. Para povos e comunidades tradicionais do Cerrado, representam a continuidade de um processo histórico de destruição: o eco-genocídio.
O termo passou a ser adotado como uma estratégia para superar a visão estreita que chamar apenas de ecocídio poderia passar, ocultando as violências mais “silenciosas”, de longo prazo, e que constituem um padrão de destruição por ação e omissão. É assim que explica Diana Aguiar, coordenadora do grupo de pesquisa Néctar – Núcleo de Estudos em Ecologia Política e Territorialidades da UFBA.
Ela ressalta que a acusação formal desse crime foi formulada a partir da Sessão em Defesa em Defesa dos Territórios do Cerrado do Tribunal Permanente dos Povos (TPP), realizada entre 2019 e 2022.
“A iminente extinção do Cerrado está intrinsecamente associada à destruição dos modos de vida dos povos e comunidades tradicionais do Cerrado enquanto povos culturalmente diferenciados da sociedade envolvente. Assim, a intenção de colocar o Genocídio dos povos do Cerrado, ao lado do Ecocídio, no centro da acusação foi crescendo”, pontua.
Diante disso, o processo político-jurídico da Sessão buscou articular povos, comunidades, organizações, movimentos sociais e grupos de pesquisa em uma frente resistência que pudesse caracterizar e nomear as violências sistematicamente sofridas e lutar por justiça. Por meio desse processo, a acusação de Eco- Genocídio no Cerrado foi formulada.
Para além do ecocídio
Ao longo desse processo, ficou evidente que não se trata apenas de ecocídio no sentido mais comum, como grandes desastres ambientais de repercussão midiática. Essas práticas incluem o desmatamento intensificado, a expansão da monocultura e da pecuária extensiva, a contaminação dos solos e das águas, e a expulsão forçada de comunidades inteiras. O rompimento da barragem da Vale em Brumadinho foi um dos exemplos mais evidentes desse tipo de dinâmica.
“No caso do Cerrado, o racismo estrutural contra povos e comunidades tradicionais se configura como elemento central da operação do genocídio”, ressalta a pesquisadora, detalhando que a racialização subalternizadora é o modus operandi da depreciação de seus modos de vida e da justificativa de que “desenvolver” e “modernizar” o Cerrado seria a redenção para uma região “infértil” e para povos “atrasados”. “Adjetivamos em um primeiro momento o genocídio como ‘cultural’, apenas para explicitar o entendimento de que quaisquer atos discriminatórios que tenham a intenção de destruir a identidade cultural que constitui um gênero da humanidade, se trata de genocídio.”
Apesar da maior visibilidade recente para o bioma, a lógica do eco-genocídio segue operando. Projeções divulgadas em 2024 pelo Instituto Altair Sales, com base em dados do Mapbiomas, indicam que, mantido o ritmo atual de destruição, o Cerrado pode ter apenas 20% de sua cobertura vegetal original até 2064. O restante já estará devastado. Estudos apontam ainda que o bioma pode perder um terço das suas águas até 2050.
“Nos últimos anos, o Cerrado ‘entrou no mapa’ para muitas pessoas preocupadas com as múltiplas crises e injustiças ambientais que assolam nosso planeta. No entanto, não foi suficiente para deter o avanço da destruição da região”, pondera Diana Aguiar.
Ela avalia que esse processo de devastação está em curso desde a década de 1970, e tem sido agravado. Especialmente em momentos como a eclosão da pandemia de Covid-19, com o aumento da fome, do desmatamento e dos incêndios florestais e os eventos ambientais extremos. Bem como a ascensão do fascismo, racismo e anti-ambientalismo no país nos últimos anos.
“Defender o Cerrado é defender a biodiversidade e a diversidade cultural como patrimônios da humanidade. Construir a formulação de eco-genocídio é instrumento das lutas dos povos por terra, território, águas, soberania alimentar e vida digna e por um futuro de justiça ambiental e agrária para toda humanidade”, conclui Diana Aguiar.
Fonte: GIFE